terça-feira, 17 de agosto de 2010

Reflexão sobre a Classe Média

De acordo com os resultados do último estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), nos últimos 13 anos, o Brasil deixou de contar com 13,1 milhões de pessoas vivendo na miséria, assim como outros 12,8 milhões de brasileiros deixaram a linha da pobreza no mesmo período. O que indica uma ascensão social de aproximadamente 26 milhões de brasileiros.

São inegáveis os benefícios econômicos que esses dados revelam, uma vez que, em termos percentuais, a parcela de pobres e miseráveis no Brasil recuou do patamar de 64,3% para 39,3% da população, em 13 anos.

Contudo, constata-se não apenas o crescimento do bolo econômico brasileiro, mas uma mudança de realidade social, de um país outrora miserável para uma jovem nação de classe média. E é justamente o enorme poder dessa comunidade migrante para classe média que deveremos nos atentar.

Nesse sentido, é natural condicionarmos nosso entendimento sobre esse fenômeno da migração social à idéia de que esta nova classe média, vindoura de extratos sociais inferiores, apresenta-se como um fator de inclusão social para número significativo de pessoas. No entanto, será que é possível considerarmos que esta parcela tão significativa da população fora, de fato, anteriormente excluída da sociedade? Se sim, poderíamos afirmar que, a partir de agora, essas pessoas passaram se beneficiar de novos instrumentos de formação cidadã, outrora inacessíveis?

Convém avaliar se tal fenômeno de migração social é de fato um indicador de maior inclusão social ou se, na verdade, é o fortalecimento de uma camada social economicamente mais viável à sociedade de consumo. Seria, assim, um diagnóstico de acesso a outros elementos de cidadania ou de maior vulnerabilidade aos achaques culturais de uma sociedade cada vez mais consumerista?

Tendo a acreditar que essa migração social não indica necessariamente uma relação direta entre maior poder aquisitivo e aumento da qualidade de vida ou de acesso a instrumentos de formação cidadã. Mas indica o posicionamento de uma massa populacional gigantesca num extrato social condizente com o aumento da sua capacidade de endividamento. E, portanto, integram-se cidadãos à sociedade ou integram-se consumidores ao mercado, até então excluídos?

Seguindo essa lógica, não seríamos levianos se começássemos a discutir a cultura do consumo como um fortíssimo mecanismo de poder muito bem manejado pelas estruturas do Estado. Ou não seria, atualmente, a emergência da propensão e da capacidade de consumo um fator de estabilidade política e social?

Portanto, atuaria o Estado, sob uma ótica liberal, na garantia da paz social ao atender os novos desejos da população com o aumento da sua capacidade de consumo e aquecimento da economia. Porém, seria omisso ao ponto de apenas assegurar o aumento do acesso e não socializar a qualidade do benefício?

Observamos, portanto, que a presente realidade social estaria pautada não mais somente pela relação trabalho/produção, mas, principalmente, por uma relação direta entre esses fatores à capacidade de consumo e a perspectiva de endividamento. Assim, a emergência cidadã outrora idealizada como incremento da mais valia vinculada à massa trabalhadora, hoje estabelece novos parâmetros com foco no valor social do consumo.

Nesse sentido, como bem fala Marilza de Melo Foucher1, “A economia torna-se tão determinante que as ideologias dos séculos XIX e XX vão compartilhar da mesma base cultural do liberalismo econômico” e assim “a natureza e o ser humano são considerados como fator de produção”. Dessa forma, inexiste qualquer elemento que não possa ser mensurado e valorado economicamente. O fator cidadania, portanto, não fugiria a tal regra.

Poderia, então, o elemento cidadania ser valorado ou mensurado economicamente por meio da capacidade de consumo de determinado extrato da sociedade? Caso acreditemos numa resposta positiva, poderíamos chegar a conclusão de que esse fenômeno de migração social seria representado pela seguinte dicotomia conceitual da relação cidadania e consumo: estaria essa massa migrante composta por novos cidadãos consumidores ou por novos consumidores cidadãos?

Por essa lógica, de um lado, teríamos como Cidadão Consumidor aquele ideal de que existiria uma relação direta entre maior poder aquisitivo e aumento da qualidade de vida ou de acesso a instrumentos de formação cidadã. Ou seja, converter-se-ia em benefício social a elevação do patamar econômico da sociedade.

Por outro lado, teríamos a condição de Consumidor Cidadão como aquela mais próxima à realidade, a qual enxergaríamos tais indivíduos sob a ótica de quanto maior o acesso ao mercado maior seria a capacidade deste de tornar-se economicamente viável à sociedade de consumo.

De qualquer forma, é de fato muito provável que essa dicotomia não seja calcada em conceitos distintos, mas em pontos de vistas antagônicos dos dois principais atores dessa composição, sendo eles: a sociedade e o mercado.

Compreendendo que, independentemente da ótica que enxergue o cidadão como consumidor ou o consumidor como cidadão, convém destacar a evidente inversão estrutural da formação da cidadania na atualidade, sendo o ato de consumir talvez o principal método de troca de valores para com a sociedade em que vivemos. Ou não seriam estes tais valores fundamentais para a viabilidade do consumidor como elemento chave para a emergência da cidadania de mercado?

Por fim, encerro a presente discussão, questionando a possibilidade de analisarmos a emergência de uma possível cidadania de mercado como o principal mecanismo de poder atribuído às massas, em detrimento daquele conceito de emancipação social que fora idealizada como sendo vinculado à força de uma tão sonhada democracia cidadã.


Leonardo Pinheiro é secretário de Políticas Públicas de Juventude da JSB-DF

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